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Gustavo von Ha: paradoxos da imitação

A exposição Inventário; arte outra, no MAC-USP (antiga sede do Detran), tem curadoria de Ana Avelar e está em cartaz até 5 de fevereiro de 2017. São apresentados 37 trabalhos como ponto de chegada dos paradoxos imitativos, realizados por Gustavo Von Ha, que questiona uma série de conveções artísticas, por meio delas mesmas, para estabelecer relações entre verdadeiro e falso no sistema das artes contemporâneo. Se Michelangelo ou Picasso apresentassem os próprios desenhos do início de carreira ao público de seus respectivos tempos, é provável que tais objetos fossem compreendidos como exercícios de aprendizagem. Essa antiga convenção artística tinha uma dupla função atestar a habilidade do aprendiz e ensinar técnicas. A cópia cumpria assim um duplo papel pedagógico. Hoje, no entanto, quando Gustavo Von Ha apresenta suas pinturas, na exposição Inventário; arte outra, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), resultado de imitações de telas conhecidas de Alfredo Volpi e de Jackson Pollock, tensiona e chama a atenção do visitante para a questão da autoria e da originalidade.

Sejam pinturas matéricas muito espessas, cujas cores lembram Van Gogh (embora o artista diga que o ponto de partida seja trabalhos de Alfredo Volpi), sejam drippings (que imitam a gestualidade de Jackson Pollock), ambos os tipos de pinturas apresentadas na exposição têm muito de um paradoxo especular. Deslocadas da própria origem, elas são reaprendidas em gesto pelo artista que dirá: “sim, são cópias. Mas cópias autorizadas pelas famílias dos artistas, após longa negociação”, em entrevista dada ao estudantes do curso de Arte: história, crítica e curadoria. Paradoxais, porque não é autor da ideia, embora ele as tenha produzido manualmente uma a uma. Paradoxais, porque o espectador pode reconhecer um gesto de outrém, mesmo que tenha sido produzido por Von Ha. O paradoxo central está na aceitação da imitação como gesto original. E, especular, porque o reflexo é muito diferente do impulso original. Trata-se de um deslocamento da herança modernista para os dias que correm para ironizar como se constitui o “valor” no sistema das artes. E paradoxalmente, ainda, o artista afirma: “pretendo vender as imagens para instituições, porque não quero que vá parar na sala de um colecionar que a tome como original”.

A cópia como convenção artística não é aleatória, assim como a seleção dos artistas e das obras, claro. Todas as escolhas de Von Ha, ele mesmo, parecem ter um valor icônico, ou questionar o lugar do ícone. Se esse trabalho teve início com o interesse no gesto de Tarsila do Amaral e de José Leonilson, é pela circulação ampla das imagens, fora do campo artístico, que começa de fato a investigação. “Comecei pesquisando no Google as imagens mais conhecidas de Tarsila em 2007.” Esse ponto de partida dá a ver o que Duchamp já havia identificado no texto de 1962 “O ato criador”, que o olhar do espectador e a circulação da imagem alteram o significado da obra. Tal deslocamento parece ser o centro do interesse de Von Ha. A técnica e a gestualidade servem apenas como maneirismos ridículos ou como fato material, ainda que não o sejam propriamente, isto é, como disparador. De fato, eles servem de argumento para um novo roteiro de investigação, não à toa o termo “inventário” identifica uma pesquisa de fôlego em curso, cujas exposições são exemplares parciais desse processo.

Esse trabalho de imitação ao longo de quase uma década fez também com que o artista percebesse que quando imita o gesto de outros artistas surge um subproduto ou outro produto uma performance, isto é, um dispositivo de ativação de questionamento, “sem que seja necessariamente uma paródia. Na verdade, está no limiar daquilo que o próprio artista fez”, afirma. “A intenção não é a aproximação com a falsificação, embora tenha tido contato com alguns para o estudar o processo de outros artistas.”, completa. O aspecto performático ficou claro quando depois de produzir inúmeras obras audiovisuais, como a que está na exposição, para justificar a existência de um ortônimo. Na exposição, Gustavo Von Ha é uma persona de Gustavo Von Ha, uma persona que produziu como Volpi ou como Pollock. A superfície “neutra” dessas pinturas que tendem ao abstrato são recuperações para gozar do modo como o sistema das artes entroniza o artista-celebridade, uma vez que essas superfícies comportam quase qualquer conteúdo. O artista percebe a artificialidade das situações “espontâneas”, principalmente, quando produz a foto na qual imita a famosa foto de Pollock, da revista Time, que levou “dez horas e dois minutos para ser feita”. No primeiro quadro em que Von Ha, o ortônimo, aparece como Pollock está presente apenas o gesto, na segunda, no entanto, está presente a produção, implicando a iluminação e o cenário.

No vídeo ao fim da exposição, críticos, curadores e outros artistas falam sobre a persona criada por Von Ha, o ortônimo. Entre os quais, figuram Paulo Pasta, Tadeu Chiarelli. Numa das passagens, a crítica encarnada por Bárbara Paz reproduz o primeiro parágrafo do artigo “Pintura modernista” (1960) de Clement Greenberg, falando da especificidade do meio, da qualidade das cores, etc., como se fosse ontem; em outra, uma crítica afirma com o valor de verdade absoluta o dizer: “A cor.. a cor vem do tudo de tinta!”. E se o espectador mais desavisado sair por aí repetindo os impropérios dessa broma como verdade universal? É provável que boa parte da crítica de Clement Greenberg assim tenha sido feita, criando valor a uma ferramenta de propaganda de Estado. Está aí Thierry du Duve, no artigo “Kant depois de Duchamp” (1998), para mostrar que é preciso ler com atenção aos detalhes da crítica tradicional, que naquele momento estava a serviço da CIA. Por outro lado, esse lugar também faz parte do espaço espectral do paradoxo proposto por Von Ha, ele mesmo, um vez que se abandona as relações ordinárias que se estabelece com os objetos em detrimento do discurso crítico. Boa parte daqueles que frequentam exposições apenas repete seus ditames sem alterações, sem sobressaltos, sem atenção aos objetos propriamente, mas com vistas a uma crítica especializada, como verdadeiro igual a verdade.

Para que o trabalho de Gustavo Von Ha se estabeleça, a chancela e autorização das autoridades são necessárias. Então, Tadeu Chiarelli estabelece uma linha teórica de onde poderia ter partido, uma origem burguesa, reconhecível por todos aqueles que conhecem minimamente a história da arte, o impressionismo. Essa filiação não só dá lastro como autoriza um trabalho totalmente descontextualizado, ambientado por objetos de ateliê (pigmentos, teste de cores, esponja, ovo Farberger, pincéis usados, livros, etc.) e cartazes de exposição que criam um certo estranhamento, dada a datação oferecida. Se as datas do vídeo e dos cartazes não batem com a cronologia conhecida, é com a fala de Paulo Pasta, que abre e fecha os depoimentos do filme da exposição, que os sentidos passam a ser construídos, que os absurdos ficam mais explícitos, ou como diz Von Ha, ele mesmo, “é preciso dar pistas para o espectador saque que é um jogo”. Quando Pasta diz que Von Ha, ortônimo, “era estranho e deslocado”, esse deslocamento não se justifica. Pelo simples fato de a questão do muralismo, do tachismo, da action paiting não serem colocadas de modo analítico, mas em termos impressionistas, fica clara a “brincadeira” que está em curso.

Por um lado, é provável que a pintura de Von Ha, ortônimo, não entusiasme tanto a quem se interessa por artes visuais, uma vez que é sabida a origem de seus questionamentos e o questionamento que pode ser desagradável como fim. Por outro lado, com um pouco de paciência, decantada as impressões iniciais, os questionamentos a respeito da autoria e da originalidade podem aparecer ao observar aspectos das pinturas originais dos grande mestres. Esse gesto produzido na tentativa de alcançar alterações e deslocamentos de significados fazem repensar o trabalho sistemático de Von Ha, ele mesmo, numa outra chave de leitura, a saber, a de que nem os grandes mestres sabiam tão claramente de seus efeitos, nem as pinturas de Von Ha são simplesmente imitação. São, de fato, um procedimento que quer colocar numa espécie de diálogo filosófico as obras de hoje com um passado histórico, a questionar se o sistema das artes põe os holofotes sob quem produz uma poética em que as relações ordinárias podem ser repostas, sob a anomalia de um discurso estranho a si. Dito de outro modo, interessa saber se o espectador considera o objeto que observa ou se somente o discurso sobre o objeto, mesmo afastado de si, e se a circulação das imagens dão um novo formato aos significados expressos nelas mesmas. Nesse caso, o meio é a massagem que valoriza a autoestima dos artistas ao catapultar parte do interesse à parte dos interessados: museus, colecionadores e críticos. Um jogo mercadológico.

Não parece importar se verdadeiro ou falso, fato é que o dispositivo criado por Von Ha, ele mesmo, resulta de um procedimento, cujo produto é, em última análise, uma performance, que dá a ver que o que o artista produz é seu trabalho, assim como fizeram Michelangelo e Picasso, mas sob nova direção, em outro tempo.

André Aureliano Fernandes

André Fernandes cursou letras (USP) e arte (PUCSP).

É poeta, editor e crítico. Tem dois livros de poemas Deriva (Hedra, 2007) e Habitar (Hedra, 2010).

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