O MEU DUPLO
A cópia é importante para se contar uma história diferente das narrativas criadas ao longo da história, esbarrando na questão da identidade artística.
Gustavo von Ha
Historicamente, a arte tem suas raízes na fé. Era ligada a questões místicas, e sua representação simbólica era um meio de conectar o terreno ao etéreo. Desmitificar a arte e o próprio papel do artista hoje significa esclarecer o que está em jogo em um mundo onde a realidade foi substituída por narrativas e imagens, nem sempre calcadas na verdade como conhecemos.
Isso é o que me instiga. Minha produção se desenvolve a partir de diversos núcleos de trabalhos que operam dentro e fora do sistema da arte, contaminando diversas plataformas e redes de circulação de imagens como internet, salas de cinema, bibliotecas, lojas de departamentos e museus. A arte reflete a maneira como o mundo se dá como imagem, materializando visualidades que já existem no pensamento e nas coisas. Assim, ela adquire novos sentidos nessa narrativa.
Gustavo von Ha é um homem, um artista inventado, que surgiu em 2014, durante uma investigação na coleção do MAC USP em que descobri que não existia nenhum artista expressionista abstrato americano na coleção do museu por questões políticas da época de sua formação, que remonta ao MAM-SP. Nasceu o meu duplo, um artista criado como uma colagem de muitos clichês da história da arte e que teria vivido em outros tempos e, agora, preencheria aquela lacuna histórica por meio de uma espécie de pintura “gestual” abstrata, cópia dos procedimentos daquela visualidade. A cópia era pintura abstrata e não uma pintura abstrata. É figurativa e carrega dois significados: o do original e o da cópia.
Gustavo von Ha foi fazer parte das coleções do MAC USP e da Pinacoteca do Estado de São Paulo, o que muito acrescentou ao processo, já que museu não é o lugar de consagração, mas o campo de legitimação de cada ação. O trabalho tornou-se uma linha imaginária que separa a ficção da história, o falso do verdadeiro, e, nesse sentido, confunde o real.
O que isso significa? A cópia é importante para se contar uma história diferente das narrativas criadas ao longo da história, esbarrando na questão do tempo e espaço e na questão da identidade artística. Penso criticamente a questão da formação do artista no âmbito dessa tradição.
Assim como em Alice Através do Espelho e todas as inversões que constituem suas infinitas identidades, também penso nas identidades artísticas em constante mutação. Alice é confrontada com a ideia de que tudo tem dois lados e o inverso não é, necessariamente, o contrário do verso. Alguns indícios apontam que Alice é um nome originado da palavra grega alethos: a “verdadeira”, “original” ou “autêntica”. Quando nomes se fundem com adjetivos, toda e qualquer identidade se perde. É esse paradoxo que me interessa, pois destrói o senso comum de identidades fixas.
Quando copiei desenhos de Tarsila do Amaral (1886–1973) e José Leonilson (1957–1993), passei meses estudando os gestos e as técnicas de cada artista. Durante esse processo, percebi que estava atuando quase como um ator e também um tradutor. Ensai ei uma postura para cada um e criei gestos eficientes que começavam no cérebro e atravessavam todo o corpo até a ponta do lápis. De todo modo, não sou o que os trabalhos revelam, eles falam sobre o que seu próprio meio de representação se transformou: o sistema da arte serve de palco para uma grande encenação.
Quase tudo o que se produz em arte hoje é ficção; um gesto apreendido e uma ação repetida, ficcional. A mimese, e sua relação com a tradição, se dá pela repetição, e assim sempre se reconstitui em uma diferença. O papel do tradutor é fazer uma nova obra, a traduzida, equivalente à da língua original. Sua recomposição é sempre uma aproximação de fragmentos de sentidos. O papel do artista contemporâneo é uma tradução da representação por meio de uma ação performativa consciente de si mesma. Toda representação resulta nas diferenças, e desse modo, guardam a forma original. Mas não se prende mais a ela. O original não existe mais.
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A soma de tudo
Segundo Roland Barthes, a presença do autor limita a obra. Tudo o que se escreve vem da experiência e do aprendizado de outrem. Na era da Wikipédia e dos jornais que aceitam a colaboração on-line de leitores, surgem textos com milhares de autores, artigos que nunca serão finalizados, pois são atualizados o tempo todo. Quem é o autor desses textos, já que eles são constituídos também por autores do futuro? Atualmente, todo mundo produz conteúdo, as fontes de repertório são de domínio público. Isso dilui a questão da autoria e faz com que a gente perca o vínculo com o real e, dessa forma, qualquer coisa que está na rede parece ser legítima. Meu próprio trabalho é, na verdade, a soma da experiência de todo mundo.
As estratégias ficcionais podem refletir realidades difíceis e deslocadas, mas no campo da arte são mais facilmente confrontadas e ganham uma dimensão política maior. As manifestações artísticas funcionam como agentes mediadores das relações humanas e, assim, fomentam processos sociais significativos em cada época. Elas também carregam uma performatividade de intenções e ações de seus autores, mas têm autonomia sobre eles. Elas existem para além de qualquer autor.
Toda arte é política por natureza. Somos seres políticos da hora em que a gente se levanta até a hora de dormir. Tudo o que se faz no âmbito coletivo é política pura. Ser artista hoje é habitar os diferentes territórios de forma crítica e sensível, sabendo das proporções e das consequências disso em escala ampliada.
De acordo com Adorno, o valor cultural da arte consiste em seu caráter de ser uma forma de conhecimento do mundo, pois a arte é também produção de pensamento crítico criado a partir dessa experiência e pode ser mais permeável usando essa lógica como estratégia. É necessário repensar o papel do artista em tempo de pós-verdade, em que os riscos e as dúvidas constituem também um território de pensamento maior e mais democrático. Afinal, a história não é linear, tampouco absoluta.
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Crédito da imagem:
Cena de Dumbo (2017), de Gustavo von Ha.
Fonte: Revista Bravo!
Março de 2019

