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O QUIXOTE DE GUSTAVO VON HA

Quando, há 103 anos, Marcel Duchamp, sozinho em seu ateliê em Paris, na rua Saint-Hippolyte[1], construía um objeto composto por um banco de madeira e uma roda dianteira de bicicleta invertida, não tinha ideia do alcance que seu objeto teria na arte dos séculos XX e XXI. Dois anos depois chamou essa categoria de objetos de ready-made.

 

O que se tornou importante nesse objeto foi a possibilidade de se criar uma obra não a partir de uma matéria-prima desforme, mas utilizando objetos já prontos. Dentro dessa operação estão questões mais complexas como a opção pela apresentação no lugar da representação, a negação da alegoria na obra de arte com sua possibilidade de autonomia conceitual e a própria discussão da democratização e socialização da criação em arte. Todas essas questões são cabíveis de desenvolvimento e aprofundamento, não só nas artes plásticas como em todas as artes expressivas e na própria maneira como se vive contemporaneamente, com a capacidade de se transformar um mundo já dado e construído com o próprio mundo dado e construído.

 

Na literatura, algumas obras se valeram dessa operação duchanpiniana, dentre elas pode-se citar o conto Pierre Menard, Autor do Quixote[2] de Jorge Luis Borges, inicialmente publicado na revista Sur em 1939. Neste conto Borges mostra um autor que, já com um currículo farto e ricamente demonstrado na primeira parte do texto, quer escrever um livro peculiar, o capítulo IX e o XXXVIII da primeira parte e um fragmento do capítulo XXII de Dom Quixote de Miguel de Cervantes. Mas “ele não queria compor outro Quixote – o que seria fácil – mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca levou em conta uma transcrição mecânica do original; não se propunha a copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes”[3]. O narrador não explica de maneira objetiva como Menard executaria tal empreendimento e, quando tenta, coloca outro nó no emaranhado, o “método inicial que imaginou era relativamente simples. Conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra os turcos, esquecer a história da Europa entre os anos de 1602 e 1918, ser Miguel de Cervantes”[4].

 

Gustavo von Ha, como Menard, quer fazer a mesma pintura, cor por cor, linha por linha, que Alfredo Volpi e Hércules Barsotti fizeram. Mas, como Menard, não quer copiá-las simplesmente e, mais que Menard, quer transportá-las de uma tela para outra tela, fisicamente. No caso de Von Ha o processo de transposição gera uma entropia que só aumenta quanto mais ele trabalha, gerando um resultado muito diferente visualmente do original, mas talvez mais verdadeiro por conter exatamente a mesma tinta de uma tela na outra. A primeira é um fac-símile e a segunda é a mesma pintura com a mesma tinta, mas em lugares diferentes.

 

Outras obras de Von Ha são pinturas de Pollock na tentativa de ser Pollock, mas um novo Pollock; neste caso, não há transposição física, mas a vontade de reescrever a mesma pintura ou fazer novas pinturas.

 

Além das obras pictóricas existe uma vasta documentação ficcional deste artista homônimo ou do próprio Von Ha. São cartazes, catálogos, recortes de jornal sobre um artista já falecido ou ainda vivo com o mesmo nome de Von Ha. Tal como o currículo de Menard na primeira parte do conto, também se vê aqui uma âncora na realidade e outra na ficção.

 

A transposição exata de uma pintura para outra, como a escrita idêntica de um outro romance, parece tarefa impossível, ou só possível no campo da arte. Assim como nas batalhas de Quixote contra os monstros, os artistas podem tornar o impossível possível, mesmo que em alguns momentos o que vemos seja um velho com uma bacia na cabeça fingindo ser um cavaleiro com um elmo. Von Ha é esse velho. ​

 

 

Sergio Romagnolo, artista, setembro de 2016

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