AS DUAS FACES DO REFLETIR
A multiplicidade de percepções habita o trabalho de Gustavo von Ha, numa alquimia criativa para a qual convergem reflexos múltiplos, convidando o espectador a diversas experiências sensíveis e imaginativas. Sua instalação Daily Mirror(s), é um site-specific, e abre novas perspectivas dentro de sua obra — mostra combinações fragmentadas e misteriosas ambiguidades.
A série de “bolas” espelhadas é fruto de uma elaboração primorosa. Von Ha faz uso de novas tecnologias, a partir de material industrial como o acrílico, metalizando a superfície da esfera, e isto faz surgir um espelhamento comandado cuidadosamente pelo artista, que, por sua vez, não perde de vista seu objeto principal: a pintura. Seu gestual envolve pinceladas e cores, de delicada sutileza. As várias camadas de pintura que o artista introduz nas “bolas” — rosa, magenta, verde, violeta e azul profundo — revelam seu trabalho íntimo no embate de seu gesto pictural e o espelhamento de imagens análogas. Ali, processam-se os reflexos que vão modificando o trabalho ao tempo todo, conforme a luz e a paisagem.
A pintura/desenho sobre espelhos de Von Ha teoriza e põe em prática a forma dos antigos calígrafos, criando códigos e sinais de imagens do cotidiano de qualquer artista plástico, de modo a fazer com que o desenho nos espelhos apareça como uma inscrição gráfica do gesto, como base na soma dos planos convexos dos reflexos.
Pode-se observar que, em escala reduzida, as bolas pintadas e assim dispostas originam uma apresentação serial de diversas variações de fragmentos do mundo real. E, dessa forma, arremessam o espectador para dentro de um novo campo, no interior de dois focos simultâneos. Esta ambiguidade certamente inspira o espectador a se mirar, negar e confirmar, como na experiência de Alice, num mundo renovado que reflete a fugacidade ótica da esfera e da expansão dos reflexos, já que o artista constrói um espelhamento ilusório através de exercícios de densidade e imagem.
O trabalho de Von Ha transforma o espaço em espetáculo e a instalação ultrapassa a contemplação, imersa em imagens reflexas e convexas que expandem a limitação do que é possível ver na arte contemporânea — assim como a transitiva relação entre arte e sociedade. Sua obra sugere uma abertura ao movimento, dando margem ao surgimento de novos mecanismos de percepção estética, como a fragmentação da cultura contemporânea, por exemplo. Por meio de diversas variações de fragmentos do mundo real, o artista vai arremessando o espectador para diversos focos simultâneos, e com isso dá corpo a uma força externa, a “sombra do outro”, a ilusão de realidade… e a obra se instala ali, no momento de suas próprias visões.
Não dá para esquecer as influências de Warhol, da pop americana, Leonilson, Leda Catunda e as questões diferenciadas de Anish Kapoor. Von Ha vai deslindando imagens e, nessa atmosfera paradoxal, vai exalando o que jaz latente nas nossas retinas, nas memórias, nas dissonâncias, as sensações existenciais e universais do tédio cotidiano. Com isso, sua obra permanece no imaginário de quem corre com caminhos espelhados. O espectador tem a oportunidade de se confrontar com o dar e o viver e de vislumbrar, no duplo, no jogo de espelhos, na pulsão dinâmica da própria vida.
Inacessíveis e dessassociadas, as imagens fugazes vão sendo reeditadas em um processo de autodescoberta, em um movimento contínuo e sem interrupção. Percebe-se, assim, um olhar quase lúdico, que convida o espectador de se confrontar com a ambiguidade de seu próprio ser. Reveladas, então, múltiplas visões de imagens, tais sugestões de múltiplas visões de imagens são absorvidas e celebram a figura do homem e a identidade de forma imposta. O homem, em espelho, caminha com o vazio, onde digerir sua existência no limite do espelhamento.
Os reflexos dos espelhos se multiplicam em encruzilhadas de um labirinto visual como se estivéssemos na Sala dos Espelhos de Versailles. E para confundir e criar uma ambientação mais experimental, Von Ha insere na mostra um vídeo realizado em agosto de 2006, fazendo com que as imagens filmadas interpenetrem as imagens e reflexos diversos da instalação.
No vídeo, uma figura feminina e diáfana, filmada pelo artista nos gramados do Central Park, circula por entre bolhas de sabão e bolhas espelhadas verdes e roxas. Mesmo que seja no plano dos devaneios, estas imagens vão estimulando a possibilidade de contraponto para explorar o espaço dos outros. Ali, o olhar se coloca a serviço das imagens e não o contrário. Esta projeção, no meio da instalação, desloca a questão da paisagem para dentro do espaço. E cria outra superfície que vê imagens projetadas para novos scripts que se refletem nas bolas translúcidas e espelhadas do chão e das paredes. Esta extração/incrustação opera em determinado estágio de consciência: a projeção nos sobrepassa, passivamente, transportando flashes e jogando-os para fora.
O excesso de informações, que deveria resultar em imagens intrusas, na realidade confere uma metamorfose de imagens, algo que poderíamos considerar “a simulação da vida contemporânea”. A instalação, desse modo, corporifica a comunicação de mensagens, retifica a constante inserção de dados, o excesso de ondas mediáticas e o acúmulo de informações… Na realidade, as bolas espelhadas poderiam receber a designação, talvez, de “projetores e prolongadores da ação dos reflexos”.
A volumetria das esferas espelhadas se transfere para uma superfície de ilusão, decodificando o espaço em movimento topológico. O gramado do Central Park, com as bolas verdes translúcidas, e as imagens luminosas surgem em intercepções efêmeras no espaço da natureza. Neste momento, introduz-se a confusão entre realidade e representação na “alegoria da caverna” do pensamento platônico.
Conceituando esta proposta “relatividade”, Von Ha expõe, pela primeira vez, uma holografia, a Caixa de Pandora, uma imagem virtual em seu estado puro, com a qual ratifica a posição do artista enquanto criador de ilusões, duplicando e desmaterializando a obra de arte. Aqui, a imagem é real, está para fisicalidade. Realizada com dois espelhos côncavos metalizados por dentro e pintados de preto por fora, esta holografia — método descoberto e desenvolvido pelo norte-americano Bob Krick, em Michigan, em 1977 — é percebida por nossos olhos como uma imagem dialética do passado e do agora, do real e do irreal, e do princípio do infinito.
Em outras palavras, a projeção da imagem real surge concretamente; não é ilusão, mas se constitui em uma lembrança do presente de mundos paralelos, se mantém no mistério e traduz a ansiedade do vir-a-ser.
De fato, Von Ha viabiliza a mistura de focos e interferências que enriquecem nossa experiência, estabelecendo contatos e criando uma ponte em que se destaca a imagem de determinação imutável do aqui-e-agora.
Cristina Burlamaqui
Rio de Janeiro, novembro de 2006

