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OS ACHADOS DO SARACVRA

O artista Gustavo von Ha foi convidado a realizar uma exposição individual no Espaço Saracvra, localizado no Cais do Valongo. Durante uma das visitas, enquanto percorríamos as salas do sobrado, Gustavo notou que uma escada levava a um ambiente abandonado, que, durante a reforma, não havia sido recuperado por falta de verbas. Ele percebeu que as paredes desse lugar estavam estufadas, como se contivessem uma espécie de recheio. Imediatamente, como que tomado por uma obsessão repentina, golpeou a parede, que, muito fragilizada, revelou as entranhas do edifício. Lá foram desvelando-se fragmentos de objetos variados, de vasos Maragogipe à azulejaria, de tigelas zoomórficas a objetos ritualísticos – como, mais tarde, soubemos identificar.

Diante dessa nova realidade que não poderia ser contornada, Von Ha propôs substituir sua mostra por uma de caráter arqueológico e iniciou uma pesquisa detida sobre os objetos. Desse modo, este texto não se configura exatamente como um texto curatorial como outros, mas aproxima-se de um depoimento sobre essas circunstâncias que se apresentaram para nós.

Uma vez coletados os fragmentos e vestígios, Von Ha realizou conversas com arqueólogos e restauradoras para investigar a procedência de tais objetos que evidentemente não possuíam origem comum. Quando possível, foram restaurados. Os laudos das especialistas estabeleceram origens e tempos diversos para cada objeto, indicando, portanto, que o local tenha sido habitado por indígenas, portugueses e escravizados. Como se sabe, o Cais do Valongo, onde está localizado o Espaço Saracvra, foi um local de desembarque de escravizados durante a primeira metade do século XIX. Nas décadas que se seguiram, tornou-se um local de convívio entre escravizados e libertos. Em 1840, o Valongo sofreu uma reforma para receber a futura imperatriz Teresa Cristina.

Ainda não foi determinada a autoria do projeto, porém acredita-se que tenha sido feito pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny. Tal ação apagou, pela primeira vez, o Valongo. O segundo apagamento se deu com a reforma urbanística do prefeito Pereira Passos, no início do século XX. Seu redescobrimento aconteceu apenas recentemente por meio de escavações associadas às obras de reurbanização do projeto Porto Maravilha.

Intrigado com o acaso com que se deram esses eventos, Von Ha julgou pertinente investigar a aura desses objetos, cercados de uma atmosfera misteriosa. Sabe-se que o edifício sofreu um incêndio em 2015 que, acredita-se, tenha sido criminoso. Um homem surdo, mudo e cego atirou-se do prédio em chamas. Tais histórias somaram curiosidade ao já enigmático acontecimento.

Os achados foram submetidos à leitura de aura por um especialista em radiestesia. O resultado das avaliações foi surpreendente: os objetos portam um espectro de energia significativo. Von Ha também fez uso de um aurímetro e confirmou a potente energia que emanava desses objetos. Aparentemente, alguns estudiosos do assunto acreditam que a aura de objetos inanimados seria o resultado de uma combinação das auras de seres que teriam tomado contato com esse objeto, produzindo-o ou mesmo manipulando-o.

Para Walter Benjamin, que tematizou a questão em ensaio célebre, a aura da obra de arte seria algo que emana dessa obra, algo relacionado à sua singularidade e, ao mesmo tempo, que provém da associação entre arte e misticismo. “É, pois, de importância decisiva que a forma de existência desta aura na obra de arte nunca se desligue completamente da sua função ritual. Por outras palavras: o valor singular da obra de arte ‘autêntica’ tem o seu fundamento no ritual em que adquiriu o seu valor de uso original e primeiro”, afirma. Segundo ele, a reprodutibilidade técnica – em particular o cinema, forma de arte coletiva por excelência – acarretaria o encolhimento da aura.

 

Entretanto, as Polaroids de Von Ha contradizem essa posição de Benjamin demonstrando como a aura dos achados, reproduzida nas imagens, são ainda mais vigorosas. Em outras palavras, a cada reprodução, a imagem renasceria ainda mais potente.

O universo de operação de Von Ha é aquele da verossimilhança. Neste projeto, ele incorpora sua versão de arqueólogo, produzindo fragmentos silenciados da história brasileira. O artista está interessado em apagamentos e silenciamentos, nos temas à margem das narrativas hegemônicas. Esta é uma ação performática que se estende por todo o período de pesquisa do artista, voltado à complexidade das muitas histórias que compõem o Cais do Valongo.

 

Esse lugar é em si um microcosmo da história brasileira, uma espécie de quebra- cabeças da identidade nacional em sua versão mais violenta. Substitui-se um local maculado pelo registro visual da escravização por um cais mais sofisticado para receber a nova imperatriz; mais tarde, o cais é novamente apagado para dar lugar a uma reforma urbanística controversa. O estigma da marginalidade caracteriza até hoje o local, que, aliás, deve ser contraposto à riqueza histórica e cultural que esse espaço congrega.

Von Ha não organiza as peças para compor uma narrativa; as apresenta em sua dispersão contemporânea, como ocorre com o excesso do consumo de imagens na atualidade. Afinal, “a vida não é uma série de imagens que se alteram à medida que se repetem?”, diria Andy Warhol.

 

Ana Avelar, curadora

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