Duplo Atravessamento
Segundo Gilles Deleuze, no idealismo de Platão, ele distingue as “cópias-ícones” dos “simulacros-fantasmas”. As “cópias-ícones” operam a imitação do mundo das idéias, ao passo que os “simulacros-fantasmas” constituem a cópia da cópia. Eles são produzidos a partir de uma falsa semelhança, que abriria caminho à dessemelhança, à perversão e ao desvio em relação à essência.
O projeto é composto por desenhos e uma anamorfose com dimensões variadas. A escolha das imagens revela uma unidade conceitual, além de seus temas, linguagem e lugar na História da Arte. Os desenhos são feitos através do reflexo de um vidro espelhado, a partir de obras de outros artistas, com a escala levemente distorcida pelas reproduções como internet e livros, além da própria aberração da imagem pelo reflexo do instrumento utilizado.
O instrumento para a produção destes desenhos consiste numa placa de vidro espelhado sobre um suporte de madeira horizontal como base para o desenho (original ou reprodução de um lado e o papel em branco do outro). Na feitura destes desenhos “copiados” tem-se uma visão sobreposta da imagem real sobre a imagem espelhada que vai se formando de acordo com o andamento do desenho. As duas imagens estão divididas apenas pelo instrumento ótico, ou o lugar de passagem da imagem, mas a partir dele é uma visão simultânea do desenho.
Reflexos e espelhamentos são assuntos recorrentes em minha produção, desta maneira aprofundei minha investigação por meio de alguns instrumentos que foram amplamente utilizados por artistas a partir do Renascimento, como a câmera lúcida (um instrumento patenteado em 1806 que é constituído por prismas anexados a uma haste que permitem que se observe simultaneamente um objeto e a imagem deste projetada sobre uma folha de papel) ou ainda a cópia através de projeções por espelhos côncavos e a câmara escura. A apropriação de imagens torna-se um assunto inevitável já que se trabalha com reflexos.
Estes desenhos “espelhados” deslocam para dentro do campo da arte coisas que já a ele pertencia como as obras de Leonilson e Tarsila do Amaral. Para desenvolver este trabalho fiz apropriações dos “cadernos de viagem” e alguns estudos de obras emblemáticas de Tarsila do Amaral e desenhos de Leonilson, (ilustrações que o artista fez para a Folha de São Paulo e publicados no livro “Use, É lindo, Eu garanto”). Meu interesse por estes dois artistas se manifesta primordialmente pela importância do desenho em suas produções, além de serem artistas brasileiros, mortos e com seus lugares bem definidos na História da Arte. Esses dois artistas, particularmente, têm seus desenhos amplamente valorizados no mercado de arte e são desta maneira, facilmente falsificáveis. Com isso, levantam-se questões sobre plágio, originalidade, autenticidade, propriedade intelectual e sobre o papel do artista nos dias de hoje. Com estas questões, achei importante apresentar este projeto às famílias dos artistas para prévia aprovação do uso das imagens escolhidas.
Vale citar aqui o conceito de “Aura” concebido por Walter Benjamin em seu ensaio “Pequena História da Fotografia” de 1931: “aura” designa, nas palavras do autor, “Uma trama peculiar de espaço e tempo: aparência única de uma distância, por muito perto que se possa estar” (127). Nesta formulação, os objetos, artísticos ou não, estão inseridos numa teia sincrônica em que distinções entre “tecnologia e cultura”, “original e cópia”, ou “realidade e representação” parecem ter perdido o sentido de certa forma, dando lugar a categorias como “simulacro” ou “espetáculo”.
Acho importante pensar numa redefinição da atuação do artista no mundo de hoje, ao compreender que trabalhamos num mundo em que a realidade foi substituída por narrativas e imagens. O “CtrlC + CtrlV” é parte do cotidiano da maioria das pessoas onde a internet oferece todo tipo de conteúdo gratuitamente. Muitas imagens soltas na rede se multiplicam tantas vezes que é praticamente impossível saber de onde elas vêm. Estas imagens parecem estar prontas para serem apropriadas.
Eu gosto da idéia de duplos, de ilusão, de alteração da realidade. Uma informação falsa ou um hoax podem criar outro tipo de realidade. Isto também me faz lembrar a história de Orson Welles em 1938 quando interpretou “Guerra dos Mundos” no rádio e causou uma histeria coletiva nos EUA, os americanos achavam de fato que estavam sendo atacados por discos voadores.
Gustavo von Ha
Novembro de 2010